terça-feira, 30 de junho de 2009

Relíquias contemporâneas


na foto: uma futura relíquia - o actual relógio do autor

Relíquias contemporâneas são uma forma de fetichismo. A palavra, mesmo noutras línguas, é reconhecida como de origem portuguesa. O que é raro, porque há sempre muito chauvinismo na identificação primordial das invenções ou das origens. Os dinamarqueses querem também ser inventores da democracia, por exemplo, disputando o lugar aos gregos.
Voltando à etimologia: se a palavra é de origem portuguesa, não deveria, então, entre nós dizer-se “feiticismo”? Importámos o que exportámos? Ouvi isto uma vez a um grande sábio que não ficou na História... Mas que importa ficar na História aos grandes sábios?

Não curamos agora de fetichismos em geral, mas fetichismos relíquias de glórias, famas. Ou seja, o fetichismo que se põe no conhecimento, na discussão, na vivência até (ocupando muito espaço nas vidas dos aficionados, dos fãs), de pequeníssimas e insignificantíssimas bagatelas da vida de superficiais personagens, de glória mais ou menos efémera por actividades ou aparências pouco determinantes do bem da Humanidade (salvo o bem fictício, que não deixa de ser bem) em revistas mundanas, "cor-de-rosa" (com hífen, pois claro). Como bem se sabe, é este um desporto amplamente praticado em cabeleireiros e em cafés, sobre actores, cantores ou futebolistas. Mas em que medida não se aproxima ele (ou o outro dele) do fetichismo "savant" dos que querem saber todos os pormenores das vidas (ainda que passadas) de grandes escritores, filósofos, e até cientistas? E mesmo políticos? O que os separa? Valerá mais o bico de Bunsen ou as sapatilhas do grande goleador? Os óculos de Trotsky ou o bâton da diva? E no caso dos cantores líricos o problema é mais complexo, porque, se forem geniais, ou muito talentosos mesmo, e com reputação, acabam por partilhar fama e fãs de ambos os mundos.
Talvez devêssemos venerar só ideias, ou pessoas sem pequenas vidas. Mas isso é impossível. Mesmo Kant começa a aparecer com uma faceta humana: sabe-se (e esta é a menor das revelações) que gostava de beber vinho às refeições. Não apenas que dava sempre um passeio higiénico a horas certas na sua querida Koenigsberg, menos no dia em que comprou correndo o Contrato Social de Rousseau e quando desejou saber mais cedo novidades da Revolução Francesa.
Que os filósofos se humanizem, está bem. Que se tornem objectos do bric-à-brac mediático e da fofoca mundana, ajudará a que a sua filosofia seja mais conhecida? E o fetichismo por objectos dos escritores (atingindo somas altas em leilões) contribuirá para que sejam mais lidos, ou contribuirá em medida que valha a pena?
Seja como for, quando a máquina da venda e compra (mais do que a da compra e venda) entra em acção, ajudada para mais pelo mecanismo psicológico e simbólico do totemismo (todos gostamos de ter os nossos ídolos, precisamos de ídolos para nos identificarmos com eles), não haverá moralidade ou razão que façam parar o processo.
E o que se arrisca a perder-se é mesmo o conteúdo, sacrificado no altar da forma.
Ora não deixa de ser curioso que os juristas nunca presaram muito, e menos incensaram os seus grandes criadores, teorizadores. Só muito tarde vimos a barbicha doirada de Grotius, aliás Hugo van Groot, e o bigodinho tímido de Kelsen. Mesmo a iconografia dos monstros sagrados do direito é esquiva. Isso protege o carácter sacrossanto da norma e das teorias sobre ela. Se soubéssemos quem inventou a teoria geral da relação jurídica ainda a iríamos pôr em causa. Assim, parece ter descido do céu, como deus ex machina.
É que o fetichismo das pequenas coisas, dos fait divers, sacia o gosto da proximidade com os monstros sagrados, faz o comum dos mortais aparentemente partilhar da sua essência, mas trivializa a obra, o significado desses mesmos heróis. A cadeira de La Fayette, a roca de Gandhi, a escova de dentes de Keynes, a lupa de Champollion... Isso faz deles pessoas normais. Será essa a vingança dos fãs, cultos ou incultos?
Não esqueçamos a proximidade com as relíquias, entre nós satirizada pela obra homónima de Eça de Queiroz. As relíquias aproximam dos santos, dos mártires, dos profetas. De algum modo fazem o seu possuidor detentor de um tesouro rico e cobiçado. Ele ou ela tem algo dessa pessoa especial. É também o instinto proprietarista, que os etólogos dizem próprio da espécie humana. Até o que remete para o trancendente se pretende de algum modo possuir. E a relíquia pode ser usada como amuleto : objecto mágico, protector.
Na secularização desse processo, não há dúvida que certas marcas de roupa ou de acessórios, até de canetas ou de automóveis, são símbolos de status, e identificadores de uma classe, de um grupo, de uma tribo. E trata-se ainda de totemismo. Quase todos precisam de totens, que garantam uma identificação, uma pertença, uma sensação de acolhimento pelo grupo. Hoje há no mercado mil e muitos produtos que facilmente permitem essa fácil inserção em grupos virtuais. Mesmo um japonês pode afirmar-se celta, se for fascinado pela cultura céltica. Mesmo um analfabeto pode ter um relógio ou uma T shirt com o rosto de Fernando Pessoa.

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